2 de setembro de 2013

DOGMA E RITUAL DA ALTA MAGIA




Discurso Preliminar

DAS TENDÊNCIAS RELIGIOSAS, FILOSÓFICAS E MORAIS

Desde que a primeira edição deste livro foi publicada, Agendes acontecimentos se realizaram no mundo, e outros — talvez maiores — estão para se realizar.

Estes acontecimentos nos tinham sido anunciados, como de ordinário, por prodígios: as mesas haviam falado, vozes haviam saído das paredes, mãos sem corpos haviam escrito palavras misteriosas, como no festim de Baltazar.

O fanatismo, nas últimas convulsões da sua agonia, deu sinal desta última perseguição dos cristãos, anunciada por todos os profetas. Os mártires de Damasco perguntaram aos mortos de Perusa o nome daquele que salva e que abençoa; então o céu se cobriu com um véu e a terra ficou muda.

Mais do que nunca, a ciência e a religião, a autoridade e a liberdade, parecem guerrear-se encarniçadamente e guardar entre si um ódio irreconciliável. Não acrediteis, todavia, nas suas aparências sanguinolentas: elas estão em vésperas de se unirem e de se abraçarem para sempre.

A descoberta dos grandes segredos da religião e da ciência primitiva dos Magos, revelando, ao mundo a unidade do dogma universal, aniquila o fanatismo, dando a razão dos prodígios, O verbo humano, o criador das maravilhas do homem, se une pura sempre com o verbo de Deus, e faz cessar a antinomia universal, fazendo-nos compreender que a harmonia resulta da analogia dos contrários.

O maior gênio católico dos tempos modernos, o conde José de Maistre, tinha previsto este grande acontecimento. "Newton — dizia ele — nos leva a Pitágoras; a analogia que existe entre a ciência e a fé deve, cedo ou tarde, uni-las. O mundo está sem religião, mas esta monstruosidade não poderia existir por muito tempo; o século XVIII dura ainda, mas vai acabar."

Participando da fé e das esperanças deste grande homem, ousamos escavar as ruínas dos velhos santuários do ocultismo; perguntamos às doutrinas secretas dos caldeus, egípcios e hebreus os segredos da transfiguração dos dogmas, e a verdade eterna nos respondeu — a verdade, que é una e universal como ó ente; a verdade que vive nas forças da natureza, os misteriosos Elohim que refazem o céu e a terra, quando o caos tomou, por algum tempo, a criação e suas maravilhas, e quando só o espírito de Deus pairava sobre o abismo das águas.

A verdade está acima de todas as opiniões e de todos os partidos.

A verdade é como o sol; cego é quem não a vê. Tal era, não o podemos duvidar, o sentido de uma célebre palavra de Bonaparte, dita por ele numa época em que o vencedor da Itália, resumindo a revolução francesa, encarnada somente nele, começava a compreender como a república podia ser uma verdade.

A verdade é a vida, e a vida se prova pelo movimento. É pelo movimento determinado e efetivo, enfim, pela ação, que a vida se desenvolve e se reveste de novas formas. Ora, os desenvolvimentos da vida por si mesma e a sua produção de formas novas, nós chamamos criação. A potência inteligente que age no movimento universal, chamamo-la o verbo, de um modo transcendental absoluto. É a iniciativa de Deus, que nunca pode ficar sem efeito, nem parar sem ter atingido o seu fim. Para Deus, falar é fazer; e tal deveria ser sempre a capacidade da palavra, mesmo entre os homens: a verdadeira palavra é a semente das ações. Uma emissão de inteligência e de vontade não pode ser estéril, sem que haja abuso ou profanação da sua dignidade original. E é por isso que o Salvador dos homens deve nos pedir uma conta severa, não só de todos os pensamentos desencaminhados, mas também, e principalmente, das palavras ociosas.

Jesus, diz o Evangelho, era poderoso em obras e em palavras; as obras antes das palavras: é assim que se estabelece e se prova o direito de falar. Jesus se pôs a fazer e a falar, diz alhures um evangelista, e, muitas vezes, na linguagem primitiva da sagrada Escritura, uma ação é chamada um verbo.

Em todas as línguas, aliás, denomina-se verbo aquilo que exprime, ao mesmo tempo, o ente e a ação, e não há verbo que não possa ser suprido pelo verbo fazer, mudando o. regime. No princípio estava o verbo, diz o evangelista S. João. Em que princípio? No primeiro princípio: no princípio absoluto que existe antes de tudo. Neste princípio estava, pois, o verbo, isto 6, a ação. Isso é incontestável em filosofia, pois que o primeiro princípio é necessariamente o primeiro motor. O Verbo não é uma abstração: é o princípio mais positivo que há no mundo, pois que ele se prova, sem cessar, por atos. A filosofia do Verbo é essencialmente a filosofia da ação e dos fatos realizados, e é nisso mesmo que é preciso distinguir um verbo de uma palavra. A palavra pode ser, às vezes, estéril, como na seara se acham espigas chochas, mas o Verbo não o é. O Verbo é a palavra cheia e fecunda, os homens não se divertem em escutá-lo e aplaudi-lo; eles o realizam sempre, muitas vezes sem o compreender, quase sempre sem lhe ter resistido! As doutrinas que o povo repete não são as que têm sucesso. O cristianismo era ainda um mistério, quando os Césares já se sentiam destronados pelo Verbo cristão. Um sistema que o mundo admira e que a multidão aplaude pode ser somente um brilhante conjunto de palavras estéreis; um sistema que a humanidade suporta, por assim dizer, contra a sua vontade, é um verbo.

O poder se prova por seus resultados, e como dizem que escreveu um profundo político dos tempos modernos: "A responsabilidade é alguma coisa quando não se tem êxito." Esta palavra, que espíritos ininteligentes acharam imoral, é igual-mente verdadeira se for aplicada a todas as noções especiais que distinguem a palavra do Verbo, a vontade da ação, ou antes o ato imperfeito do ato perfeito. O homem que se dana, conforme a teologia católica, é o que não tem o êxito de salvar-se. Pecar é faltar à felicidade. O homem que não é bem sucedido, errou sempre: quer em literatura, quer em moral, quer em política. O mau em qualquer gênero é o belo e o bom mal sucedidos. E se for preciso ir mais além até o domínio eterno do dogma, dois espíritos havia outrora, cada um dos quais queria a divindade para si só: um teve sucesso e é ele que é Deus; o outro malogrou-se e veio a ser o demônio!

Ser bem sucedido e poder; malograr-se sempre é tentar eternamente: estas duas palavras resumem os dois destinos opostos do espírito do bem e do espírito do mal!

Quando uma vontade modifica o mundo, é um Verbo que fala, e todas as vozes se calam diante dele, como diz o livro dos Macabeus a respeito de Alexandre; mas Alexandre morreu com seu verbo de poder, porque nele não havia futuro; a menos que a grandeza romana não tivesse sido a realização do seu sonho! Ora, em nossos dias se passa alguma coisa de mais estranho: um homem que morreu no exílio, no meio do Oceano Atlântico, faz calar segunda vez a Europa diante do seu verbo, e conserva ainda o mundo inteiro suspenso pela única força de seu nome! É que a missão de Napoleão foi grande e santa; é que havia nele um Verbo de verdade. Só Napoleão podia, depois da revolução francesa, reerguer os altares do catolicismo, e só o herdeiro moral de Napoleão tinha o direito de levar Pio IX a Roma. Vamos dizer por que:

Há, na doutrina católica da Encarnação, um dogma conhecido nas escolas teológicas sob o título de Comunicação dos Idiomas. Este dogma afirma que, na união da divindade e da humanidade realizada em Jesus Cristo, a aproximação das duas naturezas foi tão estreita, que resultou disso uma identidade e uma muito simples unidade de pessoa; o que faz com que Maria, mãe do homem, possa e deva ser chamada mãe de Deus. (O mundo inteiro agitou-se por causa desta prerrogativa no tempo do concilio de Éfeso.) O que faz que se possa atribuir a Deus os sofrimentos do homem e ao homem as glórias de Deus. Numa palavra, a Comunicação dos Idiomas é a solidariedade das duas naturezas divina e humana em Jesus Cristo; solidarie-dade em nome da qual se pode dizer que Deus é homem, e que o homem é Deus.

O magismo, revelando ao mundo a Lei universal do equilíbrio e da harmonia que resultam da analogia dos contrários, soma todas as ciências pela base, e preludia pela reforma das matemáticas uma revolução universal em todos os ramos do saber humano: ao princípio gerador dos números ele une o princípio gerador das idéias, e, por conseguinte, o princípio gerador dos mundos, levando, assim, à luz da ciência o resultado incerto das instituições muito físicas de Pitágoras; opõe ao esoterismo teúrgico de Alexandria uma fórmula clara, precisa, absoluta, que todas as ciências regeneradas demonstram e justificam; a razão primária e o fim último do movimento universal, quer nas idéias, quer nas formas, se resumem definitiva-mente para ele em alguns sinais de álgebra sob a forma de uma equação.

As matemáticas, assim compreendidas, nos levam à religião, porque se tornam, sob qualquer forma, a demonstração do infinito gerador da extensão e a prova do absoluto, de que emanam os cálculos de todas as ciências.

Esta sanção suprema dos trabalhos do espírito humano, esta conquista da divindade pela inteligência e pelo estudo, deve consumar a redenção da alma humana e alcançar a emancipado definitiva do Verbo da humanidade. Então, o que ainda hoje chamamos lei natural terá toda a autoridade e infalibilidade de uma lei revelada; então, também se há de compreender que a lei positiva e divina é, ao mesmo tempo, uma lei natural, porque Deus é o autor da natureza, e não poderia contradizer-se mas suas criações e nas suas leis.

Desta reconciliação do Verbo humano nascerá a verdadeira moral, que ainda não existe de um modo completo e definitivo. Então, também uma nova carreira se abrirá diante da Igreja universal. Com efeito, até o presente, a infalibilidade da Igreja só constitui o dogma, e para isso, sem dúvida, a Divindade não queria ter necessidade do concurso dos homens, chamados mais tarde a compreender o que deviam crer primeiramente. Porém, para constituir a moral, não se dá a mesma coisa, porque ela é tão humana como divina; e necessariamente deve consentir no pacto aquele que mais obrigações toma nele. Sabeis vós o que falta mais ao mundo, na época em que estamos? É a moral. Todos o sentem, todos o dizem, e, portanto, são abertas em toda parte escolas de moral. Que falta a essas escolas? Um ensinamento que inspirasse confiança; numa palavra, uma autoridade razoável, em vez de uma razão sem autoridade de uma parte, e de uma autoridade sem razão de outra.

Observemos que a questão moral foi o pretexto da grande deserção que deixa, neste momento, a Igreja viúva e desolada. É em nome da humanidade, esta expressão material da caridade, que se fez revoltarem os instintos populares contra dogmas falsamente acusados de serem desumanos.

A moral do catolicismo não é desumana, mas é, muitas vezes, sobre-humana; por isso, ela não era dirigida aos homens do mundo antigo, e estava unida a um dogma que estabelece como possível a destruição do homem velho e a criação de um homem novo. O magismo acolhe este dogma com entusiasmo, e promete este renascimento espiritual à humanidade para a época da reabilitação do Verbo humano. Então, diz ele, o homem, tornado criador como Deus, será o operador do seu desenvolvimento moral e autor da sua imortalidade gloriosa. Criar a si próprio, tal é a sublime vocação do homem restabelecido em todos os seus direitos pelo batismo no espírito; e haverá uma tal conexão entre a imortalidade e a moral, que uma será o complemento e a conseqüência da outra.

A luz da verdade é também a luz da vida. Mas a verdade, para ser fecunda em imortalidade, quer ser recebida em almas, ao mesmo tempo, livres e submissas, isto é, voluntariamente obedientes. Com o esplendor desta claridade, a ordem se estabelece nas formas como nas idéias, ao passo que o crepúsculo enganador da imaginação só engendra e só pode engendrar monstros. Assim, o inferno se povoa de pesadelos e de fantasmas; assim o pagode dos charlatães se enche de divindades horrendas e disformes; assim, as tenebrosas evocações da teurgia dão às quimeras do Sabbat(*) uma fantástica existência. As imagens simbólicas e populares da tentação de Santo Antônio representam a fé pura e simples, lutando, na aurora do cristianismo, contra todos os espectros do mundo antigo: mas o Verbo humano, manifestado e vitorioso, foi profeticamente figurado por este admirável São Miguel, a quem Rafael dá para vencer, com uma simples ameaça, um ser inferior, tendo também a figura humana, mas com os caracteres do bruto.

Os místicos religiosos querem que se faça o bem unicamente para obedecer a Deus. Na ordem da verdadeira moral, será, sem dúvida, necessário fazer o bem pela vontade de Deus, mas também pelo próprio bem. O bem é, em Deus, o justo por excelência, que não limita, mas determina a sua liberdade. Deus não pode danar a maioria dos homens por capricho despótico. Deve existir uma proporção exata entre as ações do homem e a criação determinante da sua vontade, que faz dele, definitivamente, uma potência do bem ou um auxiliar do mal, e é o que a ciência da alta magia demonstra.

Eis o que escrevemos num livro publicado em 1845: "O tempo da fé cega passou, pois, e chegamos à época da fé inteligente e da obediência razoável; o tempo em que não acreditaremos somente em Deus, mas em que havemos de vê-lo nas suas obras, que são as formas exteriores do seu ente. "Ora, eis aqui o grande problema da nossa época: "Traçar, completar e fechar o círculo dos conhecimentos humanos; depois, pela convergência dos raios, achar um centro, que é Deus.

"Achar uma escala de proporção entre os efeitos, as vontades e as causas, para subir daí à causa e à vontade primeira.

"Constituir a ciência das analogias entre as idéias e a sua fonte primitiva.

"Tornar qualquer verdade religiosa tão certa e tão clara-mente demonstrada como a solução de um problema de geometria."

Eis agora o que diz um homem que foi assaz feliz para achar, antes de nós, a demonstração do absoluto conforme os antigos sábios, mas assaz infeliz por ver nesta descoberta somente um instrumento de fortuna e um pretexto de cupidez:

"Ser-nos-á suficiente dizer, antecipadamente à doutrina do Messianismo, que, de um lado, a aplicação da razão absoluta à nossa faculdade psicológica da cognição produz em nós a faculdade superior da criação dos princípios e da dedução das conseqüências, que é o grande objeto da filosofia, e, de outro lado a aplicação da razão absoluta à nossa faculdade psicológica do sentimento produz, em nós, a faculdade superior do sentimento moral e do sentimento religioso, que é o grande objeto da religião. — Poder-se-á, assim, entrever como o Messianismo alcançará a união final da filosofia e da religião, desembaraçando uma e outra dos seus obstáculos físicos e terrestres, e levando-as, além destas condições temporais, à razão absoluta, que é a sua fonte comum.

Além disso, já se poderá reconhecer como pela influência destas condições temporais ou destes obstáculos físicos, se tornam possíveis, de um lado, o erro no domínio da filosofia, e do outro, o pecado no domínio da religião; principalmente quando estas condições físicas são comuns às da depravação hereditária da espécie humana, que faz parte da sua natureza terrestre. E então se compreenderá como a razão absoluta, que está acima dessas condições, desta nódoa terrestre, e que, no Messianismo, deve destruir até a fonte do erro e do pecado, forma, sobre a expressão alegórica da virgem que deve esmagar a cabeça da serpente, a realização desta predição sagrada. — Ê, pois, esta Virgem augusta que o Messianismo introduz hoje no santuário da humanidade."

Crêde e vós compreendereis, dizia o Salvador do mundo; — estudai e haveis de crer, podem dizer, agora, os apóstolos do magismo.

Crer é saber por palavra. Ora, esta palavra divina, que antecipava e supria por um tempo a ciência cristã, devia ser compreendida mais tarde, conforme a promessa do mestre. Eis, pois, o acordo da ciência e da fé provada pela própria fé.

Mas, para estabelecer para a ciência a necessidade deste acordo, é preciso reconhecer e estatuir um grande princípio: é que o absoluto não se acha em nenhuma das duas extremidades da antinomia, e que os homens de partido, que sempre puxam para os extremos opostos, temem ao mesmo tempo chegar a esses extremos, considerando como loucos perigosos os que declaram claramente as suas tendências, e, no seu próprio sistema, temem instintivamente o fantasma do absoluto como o nada ou a morte, É assim que o piedoso arcebispo de Paris desaprova formalmente as basófias inquisitoriais do Universo, e que todo o partido revolucionário se indignou contra as brutalidades de Proudhon.

A força desta prova negativa consiste nesta simples observação: que um lugar central deve reunir duas tendências opostas em aparência, que estão na impossibilidade de dar um passo, sem que uma arraste a outra para trás; o que necessitará, em seguida, de uma reação semelhante. Eis aí o que acontece desde há dois séculos: presas, assim, uma à outra, sem saberem e por detrás, essas duas potências estão condenadas a um trabalho de Sísifo e mutuamente se fazem obstáculo. Voltai--vos, dirigindo-as para o ponto central, que é o absoluto, então rins se encontrarão face a face, e, apoiando-se uma na outra, produzirão uma estabilidade igual à força dos seus esforços contrários, multiplicados uns pelos outros.

Para voltar, assim, às forças humanas, o que, à primeira vista, parece um trabalho de Hércules, basta desenganar as inteligências e mostrar-lhes o fim onde crêem achar o obstáculo.

A Religião é razoável. Eis o que é preciso dizer à filosofia; e pela simultaneidade e a correspondência das leis geradoras do dogma e da ciência, pode-se prová-lo radicalmente.

A Razão é santa. Eis o que é preciso dizer à Igreja, e deve-se provar-lhe, aplicando à vitória da sua doutrina de caridade todas as conquistas da emancipação e todas as glórias do progresso.

Ora, Jesus Cristo, sendo o tipo da humanidade regenerada, a divindade feita homem, tinha por missão tornar a humanidade divina: o Verbo feito carne permitia à carne fazer-se Verbo, e é o que os doutores da Igreja não compreenderam a princípio; o leu misticismo quis absorver a humanidade na divindade. Negaram o direito divino; acreditaram que a fé devia aniquilar a razão, sem lembrar-se desta palavra profunda do maior dos hierofantes cristãos: "Todo espírito que divide o Cristo é um espírito do Anticristo."

A revolta do espírito humano contra a Igreja, revolta que foi sancionada por um espantoso sucesso negativo, teria sido, pois, neste ponto de vista, um protesto em favor do dogma integral; e a revolução, que dura há três séculos e meio, teria tido por causa um grande equívoco!

Com efeito, a Igreja católica nunca negou nem pôde negar a divindade humana, o Verbo feito carne, o Verbo humano!

Nunca consentiu nestas doutrinas absorventes e enervantes que destroem a liberdade humana num quietismo insensato. Bossuet teve a coragem de perseguir a senhora Guyon, de que, todavia, admirava e admiramos, depois dele, a conscienciosa loucura; mas Bossuet viveu, infelizmente, só depois do Concilio de Trento. Era preciso que a experiência divina tivesse o seu curso.

Sim, chamamos a revolução francesa uma experiência divina, porque Deus, nesta época, permitiu ao gênio humano medir-se contra ele; luta estranha que devia acabar por um apertado abraço; depravação do filho pródigo que tinha por único futuro uma volta decisiva e uma festa solene na casa do pai da família.

O Verbo divino e o Verbo humano, concebidos separada-mente, mas sob uma noção de solidariedade que os tornava inseparáveis, tinha, desde o começo, fundado o papado e o império: as lutas do papado para prevalecer sozinho tinham sido a afirmação do Verbo divino; e esta afirmação, para restabelecer o equilíbrio do dogma da Encarnação, devia corresponder, no império, a uma afirmação absoluta do Verbo humano. Tal foi a origem da Reforma, que tendeu aos direitos do homem! Os direitos do homem! Napoleão os provou pela glória com que cobriu sua espada. Encarnada e resumida em Napoleão, a revolução cessou de ser uma desordem e produziu, por um brilhante sucesso, a prova incontestável do seu Verbo. É então que se viu — coisa inaudita nos fastos da religião! — o homem estender, por sua vez, a mão a Deus, como que para o levantar da sua queda. Um papa, cuja piedade e ortodoxia nunca foram contestadas, veio sancionar, com a autoridade de todos os séculos cristãos, a santa usurpação do novo César, e a revolução encarnada foi sagrada, isto é, recebeu a unção que faz os Cristos, da própria mão do mais venerável sucessor dos pais da autoridade!

É sobre semelhantes fatos, tão universais, tão incontestáveis e tão brilhantes de claridade como a luz do sol, é sobre fatos semelhantes que o Messianismo estabeleceu a sua base na história.

A afirmação do Verbo divino pelo Verbo humano, impelida por este último, até o suicídio, à força de abnegação e de entusiasmo, eis a história da Igreja desde Constantino até a Reforma.

A imortalidade do Verbo humano, provada por convulsões terríveis, por uma revolta que chegou ao delírio, por combates gigantescos e por sofrimentos semelhantes aos de Prometeu, até a vinda de um homem assaz forte para prender de novo a humanidade a Deus: eis a história da revolução inteira!

Fé e razão! dois termos que o homem julga serem opostos e que são idênticos.

Autoridade e liberdade, dois contrários que são fundamentalmente a mesma coisa, pois que não pode existir um sem o outro.

Religião e ciência, duas contradições que se destroem mutuamente, enquanto contradições, e se afirmam reciprocamente, se as considerarmos como duas afirmações fraternas.

Eis aí o problema estabelecido e já resolvido pela história. Eis aí o enigma da esfinge explicado pelo Édipo dos tempos modernos, o gênio de Napoleão.

Ê certamente um espetáculo digno de todas as simpatias do gênero humano, e diremos mais, digno da admiração até dos espíritos mais frios, este movimento singular, este processo simultâneo, estas tendências iguais, estas quedas previstas e estes jorros, igualmente infalíveis, da sabedoria divina, de um lado derramada na humanidade, e da sabedoria humana, de outro, dirigida pela divindade! Rios que nascem da mesma fonte, eles, se separam para melhor abraçar o mundo, e, quando se reunirem, arrastarão tudo consigo. Esta síntese, este triunfo, este arrastamento, esta salvação definitiva do mundo, todas as almas elevadas pressentiam: mas quem, pois, antes destes grandes acontecimentos que revelam e fazem falar tão alto a potência da magia humana e a intervenção de Deus nas obras da razão, quem, pois, ousara pressenti-las?

Dissemos que a revelação tivera por objeto a afirmação do Verbo divino, e que a afirmação do Verbo humano tinha sido o fato transcendente e providencial da revolução européia começada no século XVI.

O divino fundador do cristianismo foi o Messias da revelação, porque o Verbo divino estava encarnado nele, e nós consideramos o imperador como o Messias da revolução, porque nele o Verbo humano se tinha resumido e se manifestava em todo o seu poder.

O Messias divino foi enviado em socorro da humanidade, que parecia gasta pela tirania dos sentidos e as orgias da carne. O Messias humano veio de algum modo em socorro de Deus, que o culto obsceno da razão ultrajava, e em auxílio da Igreja, j ameaçada pelas revoltas do espírito humano e pelas saturnais da falsa filosofia.

Desde que a Reforma e depois a Revolução tinham abalado a Europa a base de todos os poderes; desde que a negação do direito divino transformava em usurpadores quase todos os senhores do mundo e entregava o universo político ao ateísmo ou ao fetichismo dos partidos, um único povo, conservador das doutrinas de unidade e autoridade, se tinha tornado o povo de Deus em política. Assim, este povo crescia na sua força de um modo formidável, inspirado por um pensamento que podia transformar-se em Verbo, isto é, em palavra de ação: este povo, era a raça vigorosa dos eslavos, e este pensamento, era o de Pedro, o Grande.

Dar uma realização humana ao império universal e espiritual do Messias, dar ao cristianismo a sua realização temporal, unindo todos os povos num só corpo, tal devia ser, desde então, o sonho do gênio político, transformado pela idéia cristã em gênio social. Mas onde ficaria a capital deste colossal império? Roma tivera sobre isso a sua idéia, Pedro, o Grande, tinha a sua e só Napoleão podia conceber uma outra.

A fortuna dos descendentes de Pedro encontrava, com efeito, nesta época, um dique invencível nas ruínas dos santuários dos papas, ruínas viventes, em que parecia dormitar o catolicismo, imortal como o Cristo no seu sepulcro. Se a Rússia tivesse sido católica depois da Reforma, a revolução francesa devia pertencer àquele que levantasse a autoridade espiritual na sua expressão mais simples e mais absoluta, porque os fatos seguem sempre as idéias. A autoridade divina de Pedro, apóstolo, faltava aos projetos do Czar Pedro. Era uma boa sorte que a Rússia deixava para a França. Napoleão compreendeu-o; reergueu os altares, fêz-se sagrar pelo sucessor de Hildebrando e de Inocêncio III, e desde então acreditou na sua estrela, porque a autoridade que vem de Deus não faltava mais ao seu poder.

Os homens tinham crucificado o Messias divino, o Messias humano foi abandonado à desgraça pela Providência; porque do suplício de Jesus Cristo, acusado pelos padres, devia nascer um sacerdócio novo, e do martírio do imperador, traído pelos reis, devia nascer uma realeza nova.

Que é, com efeito, o império de Napoleão? É uma síntese revolucionária resumindo o direito de todos no de um só. É a liberdade justificada pelo poder e pela glória; é a autoridade provada por atos; é o depotismo da honra substituído pelo temor. Por isso na tristeza da sua solidão, em Santa Helena, Napoleão, tendo a consciência do seu gênio e compreendendo que lodo o futuro do mundo estava nele, teve tentações de desespero, e não via outra alternativa para a Europa senão a de ser republicana ou cossaca antes de cinqüenta anos.

"Novo Prometeu — escrevia ele, algum tempo antes de morrer —, estou ligado a um rochedo e um abutre me vem dilacerar.

"Sim, roubei o fogo do céu, para com ele dotar a França; o fogo subiu à sua fonte, e eis-me aqui!

"A glória era para mim este ponto que Lúcifer lançou sobre o caos para escalar o céu; ela reunia ao passado o futuro, que está separado dele por um abismo... Nada mais deixo a meu filho senão o meu nome!"

Nunca uma coisa tão grandiosa como estas poucas linhas saiu do pensamento humano; e todas as poesias inspiradas pelo destino estranho do Imperador são bem pálidas e bem fracas em comparação com esta linha: — Nada mais deixo a meu filho senão o meu nome! Seria, talvez, somente uma herança de glória que ele acreditava transmitir, ou antes, na intuição profética dos moribundos, compreendia ele que o seu nome, inseparável do seu pensamento, continha, em si só, toda a sua fortuna com os destinos do mundo?

Pretender que a humanidade se enganou nos seus movimentos, que ela se desencaminhou nas suas evoluções, é blasfemar a Providência. E, todavia, estes movimentos e estas evoluções, às vezes, parecem contraditórios; mas os paradoxos opostos se refutam uns pelos outros, e, semelhantes às oscilações do pêndulo, que tendem sempre, restringindo-se, para o centra de gravidade, os movimentos contrários são apenas aparentes, e as verdadeiras tendências da humanidade se acham sempre na linha reta do progresso. Assim, quando os abusos do poder produziram a revolta, o mundo, que não pode fixar-se na escravidão nem na anarquia, espera a instauração de um novo poder, que terá em conta a liberdade dos seus protestos e reinará por ela.

Este poder novo Paracelso no-lo faz conhecer nas admiráveis predições que pareceriam feitas imediatamente, se um grande número de páginas ainda não se referisse ao futuro.

Não se esclarece mais o futuro do que se ressuscita o passado, mas considera-se sempre nele o que é duradouro; ora, só é duradouro o que é fundado na própria natureza das coisas. Nisso mesmo, o instinto dos povos se conforma com a lógica das idéias, e duas vezes o sufrágio universal, colocado entre c obscurantismo e a anarquia, adivinhou a conciliação da ordem com o progresso, e nomeou Napoleão.

Disseram que o próprio imperador não pudera conciliar a liberdade e a ordem, e que, para fundar o seu poder, teve de interdizer aos franceses o uso dos seus direitos. Disseram que nos fizera esquecer a liberdade à força de glória, e não compreenderam que caiam numa contradição evidente. Por que a sua glória é a nossa, se éramos somente seus escravos? Esta palavra glória terá mesmo uma significação para homens que não sejam livres? Consentíamos na sua disciplina, e ele nos levava à vitória; o ascendente do seu gênio era o nervo do seu poder, e se não permitia a ninguém contradizê-lo, estava completamente no seu direito, porque tinha razão, "O Estado sou eu!", tinha dito Luís XIV, resumindo "assim, numa só palavra, todo o espírito das instituições monárquicas. "O povo soberano sou eu!", podia dizer o imperador, resumindo, por sua vez, toda a força republicana; e é, evidente que quanto mais seu chefe tinha autoridade, tanto mais o povo francês era livre.

O que tornou tão terrível a agonia de Napoleão, não foi a saudade do passado; não se tem saudade da glória que pode-ria morrer; porém, era o medo de levar consigo o futuro do mundo. "Oh! não é a morte — murmurava ele —, é a vida que me mata"! Depois, levando a mão ao peito: "Cravaram aqui um cutelo de algoz e quebraram o ferro na ferida!"

Um momento depois, neste instante supremo em que a vida foge, e em que o homem, já iluminado interiormente pela luz de um outro mundo, tem necessidade de deixar a sua última palavra aos vivos, como um ensino e uma herança, Napoleão, repetiu duas vezes estas palavras enigmáticas: "A chefia do exército!" Seria um último desafio lançado ao fantasma de Pedro, o Grande, um grito supremo de desespero ou uma profecia dos destinos da França? Então, a humanidade inteira aparecia ao imperador, harmoniosa e disciplinada, marchando para a conquista do progresso, e queria ele resumir, numa só, o problema dos tempos modernos que deve ser proximamente resolvido entre a Rússia e a França: a chefia do exército!

O que dá, neste momento, mais sorte à França é o seu catolicismo e a sua aliança com o papado, esta potência que os anarquistas dizem caída, e que Napoleão considerava mais forte do que um exército de trezentos mil homens. Se a França, como o queriam os anarquistas imbecis, se tivessem ligado, em 1819, com a ingratidão romana, ou tivesse somente deixado o trono pontificai ser restaurado pela Áustria e pela Rússia, os destinos da França se acabariam, e o Gênio indignado do imperador, passando ao Norte, realizava em proveito dos Eslavos o belo sonho de Pedro, o Grande.

Para os homens que imaginam o absoluto nos extremos, a razão e a fé, a liberdade e a autoridade, o direito e o dever, o trabalho e o capital são inconciliáveis. Mas o absoluto não é mais admissível em cada uma das opiniões separadas do que o inteiro é concebível em cada uma das suas frações. Fé razoável, liberdade autorizada, direito merecido pelo dever realizado, capital filho e pai do trabalho; eis, como dissemo-lo já em outros termos, as fórmulas do absoluto. E se nos perguntarem qual é o centro da antinomia, qual é o ponto fixo do equilíbrio, já respondemos que é a própria essência de um Deus, ao mesmo tempo soberanamente livre e infinitamente necessário.

Que a força centrípeta e a força centrífuga sejam duas forças, contrárias, não é para se duvidar; mas também que dessas duas forças combinadas resulta o equilíbrio da Terra, é o que seria igualmente absurdo e inútil negar.

O acordo da Razão com a Fé, da Ciência com a Religião, da Liberdade com a Autoridade, do Verbo humano, numa palavra, com o Verbo divino, não é menos evidente, e indicamos suficientemente as suas provas. Mas os homens nunca consideram como provadas as verdades que recusam entender, porque elas contrariam as suas paixões cegas. À demonstração mais rigorosa, vos respondem sempre pela própria dificuldade que acabais de resolver. Recomeçai vossas provas, eles se impacientarão, e dirão que estais repetindo.

O Salvador do mundo tinha dito que o vinho novo não deve ser posto em odres velhos, e que não se deve coser um pano novo num manto usado.

Os homens são simplesmente os representantes das idéias, e não é para se admirar se os erros encarnados repelem a verdade com desdém ou mesmo com cólera. Mas o Verbo é essencialmente criador, e em cada nova emissão do seu calor e da sua luz, faz nascer no mundo uma humanidade nova. A época do dogma obscuro e da cegueira intelectual passou; portanto, não faleis do novo sol aos velhos cegos; chamai ao seu testemunho olhos que se abram, e esperai os clarividentes para explicar os fenômenos do dia.

Deus criou a humanidade; mas, na humanidade, cada indivíduo é chamado a criar a si próprio como ser moral e, por conseguinte, imortal. Reviver na humanidade, tal é a esperança vaga que o panteísmo e o misticismo revolucionário deixam aos seus adeptos; nunca morrer na sua individualidade inteligente e moral, tal é a prerrogativa que a revelação assegura a cada um dos seus filhos! Qual dessas duas idéias é a mais consoladora e a mais liberal? Qual das duas, principalmente, dá uma base mais certa e um fim mais sublime à moralidade humana?

Todo poder que não dá razão de si mesmo e que pesa sobre as liberdades, sem lhes dar garantias, é somente um poder cego e transitório; a autoridade verdadeira e duradoura é a que se apóia na liberdade, dando-lhe, ao mesmo tempo, uma regra e um freio. Isto exprime o absoluto em política.

Toda fé que não ilumina e não engrandece a razão, todo dogma que nega a vida na inteligência e a espontaneidade do livre arbítrio, constituem uma superstição; a verdadeira religião é a que se prova pela inteligência e se justifica pela razão, submetendo-as, ao mesmo tempo, a uma obediência necessária. Isto é a indicação do absoluto em religião e em filosofia.

Da idéia que os homens fizeram de Deus, sempre procederam as noções de poder, quer no espiritual, quer no temporal, e a palavra que exprime a Divindade, tendo sido, em todos os tempos, a fórmula do absoluto, quer em revelação, quer em intuição natural, o sentido que se dá a essa palavra foi sempre a idéia dominante de toda religião e de toda filosofia, como de toda política e de toda moral.

Conceber em Deus a liberdade sem necessidade, é sonhar uma onipotência sem razão e sem freio, é entronizar no céu o ideal da tirania. Tal foi, em muitos espíritos entusiastas e místicos, o mais perigoso erro na Idade Média.

Conceber em Deus a necessidade sem a liberdade, é fazer dele u'a máquina infinita, de que, por desgraça nossa, somos as rodas inteligentes. Obedecermos ou sermos despedaçados, tal seria nosso destino eterno; e obedeceríamos a alguma coisa que mandaria sem saber porque: tristes viajantes que seríamos, presos nos vagões que uma formidável locomotiva arrasta-ria a todo vapor na grande estrada do abismo. Esta doutrina panteística e fatal é, ao mesmo tempo, a absurdidade e a calamidade do nosso século.

Esta lei suprema da liberdade e da necessidade, regidas e temperadas uma por outra, se acha em toda parte e domina todos os fatos em que é relevada uma virtude, um poder justo ou uma autoridade qualquer. No mundo que a mão providencial de Carlos Magno tinha, tirado das trevas da decadência e que ele sustinha sobre o caos da barbaria, havia o papado e o império dois poderes, sustentados e limitados um pelo outro. O papado, então depositário do dogma iniciador e civilizador, representava a liberdade, que tem as chaves do futuro: e o imperador, armado com a espada, estendia sobre os rebanhos que o cajado dos pontífices impelia para diante, o braço de ferro da necessidade, que assegurava e regulava a marcha da humanidade no caminho do progresso.

Que ninguém se engane com o movimento religioso da nossa época, iniciado por Chateaubriand e continuado por Lamenais e Lacordaire; este movimento não é retrógrado e não ilude a emancipação da consciência humana. Á humanidade se tinha revoltado contra os excessos do misticismo que, afirmando a liberdade absoluta de Deus, sem admitir nele necessidade alguma, aniquilava a justiça eterna e absorvia a personalidade do homem na obediência passiva; o Verbo humano, com efeito, não podia deixar-se devorar assim; mas as paixões cegas procuravam levar o protesto à extremidade contrária, fazendo-lhe proclamar a soberania única e absoluta do individualismo humano. Lembramo-nos ainda do culto da Razão, inaugurado em Notre-Dame, e dos homens de Setembro que maldiziam a Saint-Barthelemy. Estes excessos produziram logo a lassidão e o desgosto; mas a humanidade não renunciou por isso ao que tinha tornado necessário o seu protesto. Chateaubriand veio, então, desenganar os espíritos que tinham sido desviados pelos caluniadores da Igreja. Ele fez amar a religião, mostrando-a humana e razoável; o mundo tinha necessidade de se reconciliar com o seu Salvador, mas é reconhecendo-o como sendo verdadeiramente homem, que se dispunha a adorá-lo de novo como o verdadeiro Deus.

O que se pede hoje ao padre é, principalmente, a caridade, esta sublime expressão da humanidade divina. A religião não se contenta mais em oferecer à alma as consolações da outra vida; ela se julga chamada a socorrer nesta os sofrimentos do pobre, a instruí-lo, a protegê-lo e a dirigi-lo no seu trabalho. A ciência econômica vem diante dela, nesta obra de regeneração. Tudo isso se faz talvez lentamente, mas enfim o movimento se opera, e a Igreja, auxiliada pelo poder temporal, não poderia deixar de adquirir logo toda a sua influência de outrora para pregar ao mundo o cristianismo realizado na síntese messiânica. Se realmente a Igreja tivesse negado o Verbo humano; se, por conseguinte, fosse inimiga natural de toda liberdade e do progresso, nós a consideraríamos como morta e pensaríamos que, com ela, aconteceria o mesmo que com a sinagoga judaica; mas, ainda uma vez, isso não acontece e não poderia acontecer. A Igreja que, na sua constituição, reflete a imagem de Deus, traz em si a dupla lei de liberdade e de autoridade contidas, reguladas e temperadas uma pela outra.

Com efeito, a Igreja, ao mesmo tempo que manteve a integridade e a estabilidade do dogma, deu-lhe, de concilio em concilio, soberbos desenvolvimentos. Por isso, entre os herejes e dissidentes, enquanto que uns acusavam a ortodoxia de imobilismo, outros lhe reprovavam incessantes inovações; todos os sectários, para separar-se da comuna eclesiástica, pretextaram o desejo de voltar às crenças e práticas da Igreja primitiva.

Se falássemos aos católicos do século XV ou aos filósofos do XVIII de um acordo necessário entre a liberdade de consciência e a autoridade religiosa, entre a razão e a fé, teríamos indignado uns e feito rir amargamente os outros. Falar de paz e aliança no meio de uma batalha é, com efeito, gastar muito mal o seu tempo e querer perder as suas palavras.

As doutrinas de que nos fazemos intérprete, porque as consideramos como a expressão mais adiantada das tendências da inteligência humana na época em que vivemos, estas doutrinas, pressentidas desde alguns anos por um pequeno número de espíritos de elite, podem ser emitidas hoje com esperança Me serem acolhidas; mas, há apenas alguns anos, não teriam achado em parte alguma nem uma atenção condescendente, nem uma tribuna, nem um eco.

É que, então, os partidos extremos não tinham ainda sido obrigados a abandonar as suas pretensões diante da onipotência dos acontecimentos providenciais, e dificilmente se poderia ficar neutro no meio de uma guerra encarniçada; qualquer concessão de um para outro era, então, considerada como uma verdadeira traição, e os homens que nunca abandonam a justiça, sendo obrigados a procurá-la separada e sucessivamente nas duas causas separadas, tornavam-se suspeitos a todos, como renegados ou trânsfugas. Ter convicções tão enérgicas para preferir, então, a sua independência conscienciosa aos encorajamentos das companhias era condenar-se a uma solidão que não era sem apreensão e sem angústia. Ficar isolado entre dois exércitos que se atacam, não é ficar exposto a todos os golpes? Passar de um para outro, não é querer fazer-se proscrever em ambos? Escolher um ao acaso, não é trair o outro?

São estas alternativas cruéis que levaram homens como Lamenais, do ultramontanismo ao jacobinismo, sem lhes permitir achar, em parte alguma, nem certeza, nem descanso. O ilustre autor das Palavras de um Crente, espantado de ver levantar diante de si a anarquia e o nada, sob a máscara do socialismo, e não achando no seu gênio irritado justificação alguma da antinomia que o impressionava, não recuou até Zoroastro, e não procurou nos dogmas desoladores do maniqueísmo uma explicação qualquer da guerra eterna dos Amchaspands e dos Darvands?

Mas os quatro anos que acabam de se passar foram, para o mundo, cheios de ensinamentos e de imensas revelações. A revolução se explicou e se justificou uma segunda vez pela criação de uma autoridade absoluta, e agora nós compreende-mos que o dualismo constitucional nada mais era que o maniqueísmo em política. Para conciliar a liberdade e o poder, é preciso, com efeito, apoiá-los um sobre o outro, e não opô-los um ao outro.

A soberania absoluta, fundada sob o sufrágio universal, tal é, de ora em diante, a noção única da verdadeira autoridade, em religião como em política. Assim serão constituídos os governos de direito humano, segunda forma do direito divino, que é imprescritível na humanidade.

É pela inteligência da verdade, e a prática razoável do bem, que não só os indivíduos, mas também os povos se libertam. Sobre homens cuja alma é livre, a tirania material é impraticável; mas também a liberdade exterior das multidões e dos homens que interiormente estão sujeitos a preconceitos e a vícios, não passa de uma multiplicação e complicação de tirania. Quando a maioria dos homens inteligentes é senhora, a minoria dos sábios é escrava.

Por isso é preciso distinguir o direito efetivo e o princípio das suas aplicações na política da Igreja.

O seu trabalho foi sempre para submeter as fatalidades da carne à providência do espírito; é em nome da liberdade moral que ela opõe um dique à espontaneidade cega das tendências físicas; e se, nos nossos dias, não se mostrou simpática ao movimento revolucionário, é que ela sentiu, de um modo sobreeminente e infalível, que nele não estava a verdadeira liberdade. São os abusos possíveis da liberdade que tornam necessária a autoridade; a autoridade não tem outra missão, na Igreja e no Estado, senão a de proteger a liberdade moderada de todos, contra a liberdade desregrada de alguns. Quanto mais forte é a autoridade, tanto mais poderosa é a sua proteção. Eis por que foi necessária para a Igreja a infabilidade; eis também por que sempre, num Estado bem governado, a força deve ficar para a lei. A idéia de liberdade e a de autoridade são, pois, indissoluvelmente unidas e se apoiam unicamente uma na outra.

A tirania no mundo antigo era a liberdade absoluta de alguns, em prejuízo da liberdade de todos. O Evangelho, impondo deveres aos reis como aos povos, deu àqueles a autoridade que lhes faltava, e garantiu aos outros uma liberdade fundada sobre direitos novos, com a certeza de um progresso real e de aperfeiçoamento possível a todos.

Se a inteligência humana não fosse perfectível, para que serviria, pergunto eu, o ensino permanente da Providência e por qual razão a revelação se teria manifestado sob formas sucessivas e sucessivamente mais perfeitas? A natureza nos mostra o progresso na constituição de todos os seres e só lentamente realiza suas obras-primas. O movimento é, em toda parte, o sinal da vida, e mesmo quando parece realizar-se percorrendo um círculo, neste círculo, ao menos, vai sempre para diante, e nunca dá, voltando sobre si mesmo, um desmentido à mão que o imprime.

A lei do movimento, se não fosse regulada pela providência, no céu, e pela autoridade, na terra, seria uma lei de destruição e de morte, porque seria uma lei de desordem; mas, de outro lado, se a resistência que regula o movimento chega a paralisá-lo e a fazê-lo parar, de duas coisas, uma: ou o movimento romperá a resistência e destruirá a autoridade, ou a autoridade aniquilará o movimento e assim se suicidará, destruindo a sua própria força e a sua própria vida.

É assim que o judaísmo derrubou a si próprio, querendo opor-se ao rebentar do cristianismo, que era a conseqüência natural e o desenvolvimento necessário dos dogmas de Moisés e das promessas dos profetas.

O catolicismo não imitará o judaísmo e não se oporá à próprio nome, uma promessa de universalidade, que dá adiante grande síntese messiânica, porque a Igreja Católica traz, no seu notadamente seu verdadeiro nome à Igreja do futuro. Roma e Constantinopla não se disputarão uma segunda vez o império do mundo: onde se manifestar o Verbo, aí estará o pontífice do Verbo. A Sé, que terá a obediência do mundo, será a do sucessor de Jesus Cristo: e todo chefe de um pequeno número de dissidentes, sejam quais forem seus pretextos e pretensos títulos, não será diante do sufrágio universal das nações, mais do que um antipapa e sectário.

A reunião das duas Igrejas grega e romana é, pois, a grande revolução, ao mesmo tempo religiosa e civil, que deve, cedo ou tarde, mudar a face do mundo; e esta revolução não deixaria de ser o resultado do desenvolvimento e da propagação das doutrinas cabalísticas na Igreja e na sociedade.

Em vão nos diriam que a Igreja se julga perfeita, e afetaria temer que ela não admita a lei do progresso. Já respondemos a esse temor por uma passagem decisiva de Vicente de Lerins; mas a questão é muito importante para acrescentarmos aqui algumas notáveis autoridades.

Um sábio pastor inglês, recentemente convertido ao catolicismo, o doutor John Newman, publicou ultimamente uma obra que obteve a alta aprovação da autoridade eclesiástica, e na qual prova que o desenvolvimento do dogma, e, por conseguinte, o da inteligência humana, foi a obra especial do catolicismo, considerado como princípio iniciador e conservador, na explicação destes teoremas divinos que são a letra do dogma. Antes de provar a sua tese, ele estabelece vitoriosamente a existência do progresso natural em todas as coisas, porém mais particularmente na revelação. Eis em que termos ele se exprime:

"Conforme a história de todas as seitas e de todos os partidos em religião, e conforme a analogia e o exemplo da Escritura, podemos concluir razoavelmente que a doutrina cristã admite desenvolvimentos formais, legítimos, reais, desenvolvimentos previstos pelo seu divino autor.

"A analogia geral do mundo físico e moral confirma esta conclusão:


"Todo o mundo natural e seu governo — diz Butler — é um plano ou sistema, não um sistema fixo, mas progressivo, um plano no qual tem lugar o ensaio de diversos meios, antes que os fins propostos possam ser atingidos. À mudança das estações, a cultura dos frutos da terra, a própria história de uma flor é a prova disso; e o mesmo se dá com a vida humana. Assim os vegetais e os animais, apesar de necessariamente formados numa vez, contudo crescem por graus para chegar à idade madura. E assim os agentes razoáveis que animam os corpos são naturalmente levados para o caráter que lhes é próprio pela aquisição gradual de conhecimentos e de experiências, e por uma longa continuidade de ações."

"A nossa existência não é somente sucessiva, como deve ser necessariamente, mas também um estado do nosso ente é designado pelo Criador para servir de preparação a um outro estado e de transição àquele que lhe sucede. Assim, a adolescência vem depois da infância, a juventude depois da adolescência e a idade madura depois da juventude. Os homens, na sua impaciência, querem precipitar tudo. Mas o autor da natureza parece só operar conforme uma longa deliberação, e chega a seus fins por progressos sucessivos e Lentamente realizados... Deus opera da mesma forma, no curso da sua providência natural e na manifestação religiosa, fazendo suceder uma coisa a unira, depois uma outra ainda a esta, e continuando sempre, por uma série progressiva de meios que se estendem além e aquém da nossa limitada vista. A lei nova do cristianismo nos é representada na da natureza."

"Nas suas parábolas — observa o Dr. Newman — Nosso Senhor compara o reino do céu a um grão de mostarda que um homem toma e semeia no seu campo. Este grão, em verdade, é o menor de todos os grãos; mas, quando cresceu, é a maior das plantas e torna-se árvore; e, como diz S. Marcos, "esta árvore lança ramos nos quais as aves do céu vêm repousar". E depois, no mesmo capítulo de S. Marcos: "O reino de Deus é semelhante a um homem que deita na terra a semente Embora durma ou esteja acordado, dia e noite a semente germina e cresce sem que ele saiba como, porque a terra produz o seu fruto por si mesma." Aqui se trata de um elemento íntimo da vida, quer princípio, quer doutrina, antes que de qualquer manifestação exterior; e é para se observar que, conforme o espírito do "texto, o caráter espontâneo, tanto como o gradual, pertence ao crescimento. Esta descrição do progresso corresponde ao que já foi observado em relação ao desenvolvimento; isto é, que não é nem resultado da vontade, nem da resolução, nem de uma exaltação fictícia, nem do mecanismo da razão, nem mesmo de u'a maior sutileza da inteligência, mas age por sua força nativa, cuja expansão e efeito têm lugar num momento determinado. Sem dúvida que a reflexão, até certo ponto, o rege e modifica, apropriando-o ao gênio particular das pessoas, mas sempre conforme o primeiro desenvolvimento moral do próprio espírito."

É impossível indicar mais claramente a existência das duas leis que se completam mutuamente, se bem que em aparência opostas, da necessidade providencial e da liberdade humana. Para os homens, a própria natureza é esta necessidade que contém e fecunda os impulsos do seu Verbo criador; Verbo que constitui no homem a semelhança de Deus, e que se chama liberdade!

A tática dos heresiarcas c dos materialistas foi, em todos os tempos, abusar das palavras para perverter as coisas; depois, acusar a autoridade de apostasia, quando ela vingava, condenando-os, a verdades mal interpretadas por eles e que lhes serviam de bandeira.

Chamais liberdade a mais condenável licença, chamais um movimento tumultuoso e subversivo; a Igreja vos desaprova, e vós a acusais, com amargura, de ser inimiga do progresso e da liberdade! Ela só é inimiga da mentira e vós o sabeis muito bem. E é por isso que, querendo perseverar na vossa guerra contra ela, sempre é preciso que digais mentira: aliás estareis de acordo com ela, e seria preciso, de boa ou má vontade, que vos sujeitásseis ao seu poder.

Eis o que se pode dizer, em nome da Igreja, aos seus adversários de má fé. Mas temos que responder, aqui, a objeções mais sérias. Católicos sinceros, mas pouco esclarecidos, mais presos à letra que ao espírito das decisões pontifícias, nos dirão, talvez, que, nas suas encíclicas a respeito das doutrinas do abade Lamennais, Roma condenou as idéias de liberdade e progresso.

Respondemos pelos próprios termos da primeira encíclica: O papa condena os que, para regenerar a Igreja, querem fazê-la inteiramente humana, de divina que é, na sua autoridade e no seu princípio.

Logo, o que o juiz condena, não é a afirmação do Verbo humano, mas sim a negação do Verbo divino. A Igreja está, aqui no seu direito e no seu dever. Roma viu o princípio da sua autoridade espiritual atacado pelas obras do ilustre escritor, e a prova de que ela não se enganava e de que Lamennais já não acreditava mais nesta onipotência moral de que foi, não obstante, o mais zeloso e mais forte defensor, é que ele não se submeteu às suas decisões e passou além, afastando-se, num só passo retrógrado, da Igreja, do cristianismo e da civilização inteira.

Quanto à liberdade que a Igreja reprova, é a que quis destronar Pio IX, e que conduziu a Europa às bordas do abismo. Mas que pode haver de comum entre a liberdade dos filhos de Deus e a dos filhos de Caim?

Não cremos, pois, ainda uma vez, que a Igreja romana deixe a Igreja do Oriente tomar a iniciativa do movimento regenerador. A imobilidade da barca de Pedro, no meio do vaivém das vagas revolucionárias, é simplesmente um protesto divino, em favor do verdadeiro progresso.

Tudo o que se realiza fora da autoridade se realiza fora da natureza, que é a lei positiva da autoridade eterna. O ideal humano pode, pois, seguir dois caminhos opostos, ou ultrapassar a ciência pela intuição que ela deve justificar mais tarde ou desviar-se da ciência pela alucinação que ela condena. Os amigos da desordem, as almas cativas do egoísmo brutal, temendo o jugo da ciência e a disciplina da razão, tomam sempre a alucinação por guia. O paganismo teve seus falsos místicos, e é assim que o dogma filosófico dos antigos helenos se transformou em idolatria; o cristianismo também foi, por sua vez, afligido pela mesma chaga, e um ascetismo desumano, trazendo após si, como reação, o quietismo mais imoral, fez caluniar a verdadeira piedade e afastou muitas almas das práticas da religião.

Um dos mais notáveis fantasistas do nosso tempo, o paradoxal P. J. Proudhon, tendo, um dia, de contrariar Lamartine, que então estava no poder, lançou contra os poetas uma das suas cínicas e eloqüentes diatribes, que bem sabe fazer. Não temos à vista esta página, levada, como tantas outras, pelo turbilhão revolucionário, mas lembramo-nos com que verve o celebérrimo sonhador declamava contra a poesia e os sonhos; estava verdadeiramente terrível, quando representava o Estado vacilante e perdido, pronto a cair em sangue atrás de algum tocador, de guitarra, cujo êxtase da sua própria música impedia de ouvir as imprecações, os gemidos e os gritos! Eis aí, exclamava ele, o que é o governo dos poetas! Depois, apaixonando-se pela sua idéia, como de ordinário acontece, chegava a concluir que Nero era a encarnação mais completa da poesia, elevada ao trono do mundo. Incendiar Roma aos sons da lira e dramatizar assim a grande poesia de Virgílio, não era uma colossal, imperial e poética fantasia? À cidade dos Césares que ele assim sacrificava ao cenário dos seus versos. Nero queria substituir uma Roma nova, toda dourada e constituída de um só palácio!... Oh! se a grandeza da audácia e a temeridade dos sonhos fazem o sublime em poesia, Nero era, com efeito, um grande poeta! Mas não é nem Proudhon, nem nenhum dos chefes do socialismo moderno, que têm direito de o repreender.

Nero representa, para uns, a personificação mais completa do idealismo sem autoridade e da licença do poder; é a anarquia de Proudhon resumida num só homem e colocada no trono do universo; é o absoluto dos materialistas em volúpias, em audácia, em energia e em poder. Nunca uma natureza mais desordenada horrorizou o mundo com seus desvarios; e eis o que os revolucionários da escola de Proudhon entendem por poesia; porém, nós não pensamos como eles.

Ser poeta é criar; não é sonhar nem mentir. Deus foi poeta quando fêz o mundo, e a sua imortal epopéia está escrita com estrelas. As ciências receberam dele os segredos da poesia, porque as chaves da harmonia foram postas nas suas mãos. Os números são poetas, porque cantam com suas notas sempre justas, que davam arrebatamentos ao gênio de Pitágoras. A poesia que não aceita o mundo tal como Deus o fêz, e que procura inventar um outro, é simplesmente o delírio dos espíritos das trevas; é esta que ama o mistério e que nega o progresso da inteligência humana. A ela, pois, os encantamentos da ignorância e os falsos milagres da teurgia! A ela o despotismo da matéria e os caprichos das paixões! À poesia anárquica, numa palavra, as tentativas sempre vãs, as esperanças sempre enganadoras, o abutre e a raiva impotente de Prometeu, ao passo que a poesia submissa à ordem, que lhe garante uma liberdade inviolável, colherá as flores da ciência, traduzirá a harmonia dos números, interpretará a oração universal e caminhará ora diante da ciência, ora sobre os seus traços, mas sempre perto dela, na luz vivente do Verbo e no caminho certo do progresso! Este futuro próximo do cristianismo retemperado na fonte de toda revelação, isto é, nas fortes verdades do magismo e da Cabala, foi pressentido por um grande poeta polaco, Adão Michiewisch, que criou para esta doutrina um nome novo, e a chamou o Messianismo.

Este nome nos agrada e adotamo-lo com prazer, visto que não representa a idéia de uma seita nova. O mundo está cansado de retalhaduras e divisões, e tende com todas as suas forças à unidade. Por isso não somos dos que se dizem católicos e não romanos; o que constitui um dos contra-sensos mais ridículos.

Católicos quer dizer universal; ora, a universalidade não é, pois, necessariamente romana, pois que Roma está no universo?

O século XVIII viu os abusos da religião, mas desconheceu a força desta mesma religião, porque não adivinhava o seu segredo. A alta magia escapa à incredulidade e à ignorância, porque se apoia igualmente sobre a ciência e sobre a fé.

O homem é o taumaturgo da terra, e pelo seu verbo, isto é, pela sua palavra inteligente, dispõe das forças fatais. Irradia e atrai como os astros; pode curar por um contato, por um sinal, por um ato de sua vontade. Eis o que Mesmer, antes de nós, tinha vindo revelar ao mundo; eis o segredo terrível que era escondido com tanto cuidado nas sombras dos antigos santuários. Que podem, agora, provar os pretensos milagres do homem, senão a energia da sua vontade e o poder do seu magnetismo?

E, pois agora que se pode dizer, em verdade, que só Deus é Deus que os homens de prestígio não se farão mais adorar. Aliás, a síntese de todos os dogmas nos leva a um único simbolismo, que é o da Cabala e dos magos. Os três mistérios e as quatro virtudes realizam o triângulo e o quadrado mágico. Os sete sacramentos manifestam os podres dos sete gênios ou dos sete anjos, que, conforme o texto do Apocalipse, estão sempre diante do trono de Deus. Compreendemos agora as matemáticas sagradas que multiplicam setenta e duas vezes o divino tetragrama para formar os caracteres dos trinta e seis talismãs de Salomão. Levados por estudos profundos à antiga teologia de Israel, nós nos inclinamos diante das altas verdades da Cabala, e esperamos que os sábios israelitas, por sua vez, reconhecerão que só estavam separados de nós por palavras mal entendidas. Israel levou do Egito os segredos da esfinge; mas desconheceu a cruz que, nos símbolos primitivos do Egito mágico, já era a chave do céu. Ele não tardará a compreendê-lo, porque abriu seu coração à caridade. O grito de angústia dos cristãos da Síria comoveu os filhos de Moisés, e enquanto Abd-el-Kader protegia os nossos infelizes irmãos no Oriente e os defendia com perigo de sua vida, uma subscrição se abria em Paris sob o patrocínio do advogado israelita Cremieux.

O grande enigma dos séculos antigos, a esfinge, depois de ter feito a volta do mundo sem achar repouso, parou ao pé da cruz, este outro grande enigma; e há dezoito séculos e meio a contempla e medita.

Que é o homem? — pergunta a esfinge à cruz, — e a cruz responde à esfinge, perguntando-lhe: — Que é Deus?

Já dezoito vezes, o velho Ahasverus fez também a volta do globo; e, no fim de todos os séculos, e no começo de todas as gerações, passa perto da cruz muda e diante da esfinge imóvel e silenciosa.

Quando estiver cansado de caminhar sempre, sem nunca' chegar, é aí que ele repousará, e então a esfinge e a cruz falarão por sua vez para o consolar.

— Eu sou o resumo da sabedoria antiga — dirá a esfinge. — Sou a síntese do homem. Tenho uma fronte que pensa e peitos que se inflamam de amor; tenho garras de leão para a luta, flancos de touro para o trabalho e asas de águia para subir à luz. Só fui entendida nos tempos antigos pelo cego voluntário de Tebas, este grande símbolo da misteriosa expiação que devia iniciar a humanidade à eterna justiça; mas agora o homem não é mais o filho maldito que um crime original faz expor à morte do Cytheron; o pai veio, por sua vez, expiar o suplício do filho; a sombra de Laios gemeu com os tormentos de Édipo; o céu explicou ao mundo o meu enigma nesta cruz. É por isso que eu me calo, esperando que ela mesma se explique ao mundo: repousa, Ahasverus, porque é aqui o termo da tua dolorosa viagem.

— Eu sou a chave da sabedoria futura — dirá a cruz. — Sou o signo glorioso do stauros que Deus fixou nos quatro pontos cardiais do céu, para servir de duplo eixo ao universo. Expliquei na terra o enigma da esfinge, dando aos homens a razão da dor: consumei o simbolismo religioso, realizando o sacrifício. Eu sou a escada sangrenta pela qual a humanidade sobe a Deus e pela qual Deus desce aos homens. Eu sou a árvore do sangue, e as minhas raízes o bebem em toda a terra, para que não seja perdido, e forme nos meus braços frutos de devota mento e de amor. Sou o sinal da glória, porque revelei a honra; e os príncipes da terra me penduram ao peito dos bravos. Um dentre eles me deu um quinto braço para fazer de mim uma estrela; mas sempre me chamo a cruz. Talvez aquele que foi o mártir da glória previa o sacrifício, e queria, acrescentando um braço à cruz, preparar um encosto para a sua própria cabeça ao lado da do Cristo. Estendo os meus braços tanto à direita como à esquerda, e espalhei igualmente as bênçãos de Deus sobre Madalena e sobre Maria; ofereço a salvação aos pecadores, e aos justos a graça nova; espero Caim e Abel para os reconciliar e unir. Devo servir de ponto de ligação entre os povos, e devo presidir ao último julgamento dos reis; sou o resumo da lei, porque trago escrito nos meus braços: Fé, Esperança e Caridade. Sou o resumo da ciência, porque explico a vida humana e o pensamento de Deus. Não temas, Ahasverus, não mais temas minha sombra; o crime do teu povo tornou-se o do universo, porque também os cristãos crucificaram o seu Salvador; eles o crucificaram, lançando aos pés a sua doutrina de comunhão; eles o crucificaram na pessoa dos pobres; eles o crucificaram, maldizendo a ti próprio e prescrevendo o teu exílio; mas o crime de todos os homens os envolve no mesmo perdão; e tu, e Caim humanitário, tu, o mais velho dos que a cruz deve resgatar, vem repousar em baixo de um dos seus braços ainda tinto do sangue redentor! Depois de ti, virá o filho da segunda sinagoga, o pontífice da lei nova, o sucessor de Pedro; quando as nações o tiverem proscrito como tudo, quando não houver senão a coroa do martírio, e quando a perseguição o tiver feito submisso e dócil como o justo Abel, então virá Maria, a mulher regenerada, a mãe de Deus e dos homens; e ela reconciliará o judeu errante com o último papa, depois começará de novo a conquista do mundo para dá-lo aos seus dois filhos. O amor regenerará as ciências, a razão justificará a fé. Então serei a árvore do paraíso terrestre, a árvore da ciência do bem e do mal, a árvore da liberdade humana. Os meus imensos ramos cobrirão o mundo inteiro, e as populações afadigadas descansarão debaixo da minha sombra; os meus frutos serão o alimento dos fortes e o leite das criancinhas; e as aves do céu, isto é, os que passam cantando, levados nas asas da inspiração sagrada, estes repousarão nos meus ramos, sempre verdes e carregados de frutos. Repousa, pois, Ahasverus, na esperança deste belo porvir; porque é aqui o termo da tua dolorosa viagem.

Então o judeu errante, sacudindo o pó de seus pés doloridos, dirá à esfinge.

— Eu te conheço desde há muito! Ezequiel te via outrora, atrelada a esta carruagem misteriosa, que representa o universo e cujas rodas estreladas giram umas nas outras; realizei uma segunda vez os destinos errantes do órfão do Cytheron; como ele, matei meu pai, sem o conhecer; quando o deicídio se realizou e quando chamei sobre mim a vingança do seu sangue, me condenei a mim mesmo à cegueira e ao exílio. Eu fugia de ti e te procurava sempre, porque eras a primeira causa das minhas dores. Mas tu viajavas penosamente como eu, e, por caminhos diferentes, devíamos chegar juntos; bendito sejas tu, ó gênio das antigas idades, por me haveres levado ao pé da cruz!

Depois, dirigindo-se à própria cruz, Ahasverus dirá, enxugando a sua última lágrima:

— Desde há dezoito séculos te conheço, porque eu te vi levada pelo Cristo que sucumbiu sob esse fardo. Abanei a cabeça e te blasfemei então, porque ainda não tinha sido iniciado à maldição; era preciso à minha religião o anátema do mundo para lhe fazer compreender a divindade do maldito; é por isso que sofri com coragem meus dezoito séculos de expiação, vivendo e sofrendo sempre no meio das gerações que morriam ao redor de mim, assistindo à agonia dos impérios e atravessando todas as ruínas e olhava sempre com ansiedade para ver se não estavas caída; e depois de todas as convulsões do mundo, sempre te via de pé! Mas não me aproximava de ti, porque os grandes do mundo ainda te haviam profanado, e feito de ti o patíbulo da Liberdade santa! Não me aproximava de ti, porque a Inquisição linha entregue meus irmãos à fogueira em presença da tua imagem; não me aproximava de ti, porque não falavas, ao passo que os falsos ministros do céu falavam, em teu nome, de danação e vinganças; e eu só podia ouvir as palavras de misericórdia e união! Por isso, desde que a tua voz chegou ao meu ouvido, senti meu coração mudado e a minha consciência se acalmou! Bendita seja a hora salutar que me levou ao pé da cruz!

Então uma porta se abrirá no céu e a montanha do Gólgota será seu sólio e, diante desta porta, a humanidade verá, com admiração, a cruz irradiante guardada pelo judeu errante, que terá deposto a seus pés o seu bastão de viagem, e pela esfinge, que estenderá as suas asas e terá os olhos brilhantes de esperança, como se fosse tomar um novo vôo e se transfigurar!

E a esfinge responderá à pergunta da cruz, dizendo: — Deus é aquele que triunfa do mal pela prova de seus filhos, aquele que permite a dor, porque possui em si o remédio eterno; Deus é aquele que é, e diante de quem o mal não existe.

E a cruz responderá ao enigma da esfinge: — O homem é o filho de Deus que se imortaliza ao morrer, e que se liberta, por um amor inteligente e vitorioso, do tempo e da morte; o homem é aquele que deve amar para viver, e que não pode amar sem ser livre; o homem é o filho de Deus e da Liberdade!

Resumamos aqui o nosso pensamento. O homem, saído das mãos de Deus, é escravo de suas necessidades e da sua ignorância deve libertar-se pelo estudo e o trabalho. Só a onipotência relativa da vontade, confirmada pelo Verbo, torna os homens livres, e é à ciência dos antigos magos que é preciso pedir os segredos da emancipação das forças vivas da vontade.

Levamos aos pés do menino de Belém o ouro, o incenso e a mirra dos antigos magos, agora que os reis da terra parecem mandá-lo para o presepe. Que os pontífices sejam pobres, mas que numa das mãos tomem o cetro da ciência, o cetro real de Salomão, e na outra o báculo da caridade, o cajado do Bom Pastor; e somente então começarão a ser verdadeiramente reis neste e no outro mundo!

(Livro de Eliphas Levi - Continua)

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